Existem avanços históricos com relação ao assunto, mas também há ameaças aos direitos conquistados pelas mais diversas minorias. O cinema nunca foi insensível ao debate; ele está alerta para preconceitos, quebra tabus, sugere respostas, faz novos questionamentos.
Segue uma seleção de filmes feita pelo cineasta GUSTAVO GALVÃO, de diversos países, produzidos entre 1959 e 2016, percorrendo seis décadas, mostrando mais que um panorama do tema, canaliza o potencial de conscientização dessas obras, situando-as como faróis em um mundo em transformação. Inspirados e inquietos.
Esses filmes são um convite à reflexão sobre o que vivemos até aqui e o que se desenha para o futuro!
BILLY ELLIOT
(idem, Grã-Bretanha, 2000, 110′)
Direção: Stephen Daldry
Com Jamie Bell, Julie Walters e Gary Lewis
Incapaz de se adaptar às aulas de boxe, onde havia sido inscrito pelo pai viúvo, um rapaz de 11 anos descobre o balé. Isso acontece em 1984-85, numa cidade marcada pela dura greve dos trabalhadores nas minas de carvão. Num contexto de virilidade acentuada, o talento de Billy para a dança triunfa e apaga os traços de intolerância e de determinismo sobre o que é masculino ou feminino.
CINCO GRAÇAS
(Mustang, Turquia, 2015, 97′)
Direção: Deniz Gamze Ergüven
Com Günes Sensoy, Doga Zeynep Doguslu e Tugba Sunguroglu
A vida de cinco garotas muda quando elas são vistas brincando com garotos na praia. A cena escandaliza a vila onde moram, a 1.000km de Istambul. A avó e o tio trancam as cinco em casa, fazem relatório de virgindade e arranjam casamentos. Dirigido por uma mulher e coescrito pela francesa Alice Winocour, o filme enfoca a opressão do modelo patriarcal num país no meio do caminho entre Ocidente e Oriente.
DOCE AMIANTO
(idem, Brasil, 2013, 70′)
Direção: Guto Parente e Uirá dos Reis
Com Deynne Augusto e Uirá dos Reis
Inventivo e imbuído da estética camp (que apela à afetação para ridicularizar o que é dominante, segundo Susan Sontag), o filme retrata o mundo de fantasia de Amianto. Rejeitada pelo mundo, ela acha forças na sua Fada Madrinha ao buscar a felicidade.
ELVIS E MADONA
(idem, Brasil, 2010, 105′)
Direção: Marcelo Laffitte
Com Simone Spoladore e Igor Cotrim
A incrível história de amor entre uma fotógrafa lésbica e uma cabelereira travesti. Tendo Copacabana como cenário, recicla os clichês das comédias românticas dentro de uma ordem sexual bem contemporânea.
FORÇA MAIOR
(Turist, Suécia, 2014, 120′)
Direção: Ruben Östlund
Com Johannes Kuhnke e Lisa Loven Kongsli
Da Suécia, país pioneiro na luta contra as barreiras de gênero, veio um filme peculiar sobre o assunto, que revela os estigmas que agem na conjuntura familiar. A trama segue uma família sueca de férias nos Alpes. O pai foge em vez de “proteger” mulher e filhos de uma avalanche e o caos se instala: ele falha em restaurar o papel de patriarca; ela se consome no papel de vítima.
GAROTAS
(Bande de Filles, França, 2014, 113′)
Direção: Céline Sciamma
Com Karidja Touré, Assa Sylla e Mariétou Touré
Sciamma ganhou renome ao contestar os estereótipos da sexualidade na infância e na adolescência. Aqui, a ação foca numa adolescente da periferia de Paris. Oprimida e sem perspectivas, ela só ganha confiança em si quando é aceita numa gangue de meninas. “O gênero é como provar vários disfarces, é uma performance”, acredita a jovem realizadora.
HEDWIG – ROCK, AMOR E TRAIÇÃO
(Hedwig and the Angry Inch, EUA, 2001, 95′)
Direção: John Cameron Mitchell
Com John Cameron Mitchell, Stephen Trask e Michael Pitt
Uma das mais espalhafatosas declarações anticaretice do cinema norte-americano neste século, o filme narra as aventuras de uma roqueira trans que emigrou da Berlim Oriental, foi vítima de uma malsucedida cirurgia de redesignação genital e não tolera o êxito de seu ex-amante. O diretor satiriza as normas sexuais com a mesma desenvoltura com a qual interpreta a protagonista.
INDIA SONG
(idem, França, 1975, 120′)
Direção: Marguerite Duras
Com Delphine Seyrig, Michael Lonsdale e Mathieu Carrière
Para aliviar o tédio, a mulher do vice-cônsul francês na Índia mantém casos diversos, com a conivência do marido. Duras radicaliza no conteúdo (ao evitar estereótipos de gênero) e na forma (com sons e imagens discrepantes).
JEANNE DIELMAN
(Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles, Bélgica, 1975, 201′)
Direção: Chantal Akerman
Com Delphine Seyrig e Jacques Doniol-Valcroze
A rotina de uma viúva que cuida do filho e faz programa para reforçar a rendaexpõe três facetas impostas à mulher: mãe, dona de casa, prostituta. Se a rotina é revelada em planos minuciosos, o sexo só se vê no final “redentor”, que endossa a autonomia dessa personagem sem igual no cinema. Com a atriz de India Song.
LAURENCE ANYWAYS
(Idem, Canadá, 2012, 159′)
Direção: Xavier Dolan
Com Melvil Poupaud e Suzanne Clément
Laurence tem uma relação apaixonada com a namorada, mas se sente prisioneiro no próprio corpo. Até decidir mudar. Engajado como nunca, Dolan detalha os desafios de um homem para ser reconhecido como mulher. E em meio a olhares condenatórios, Laurence segue firme em sua luta.
MADAME SATÃ
(idem, Brasil, 2002, 105′)
Direção: Karim Aïnouz
Com Lázaro Ramos, Marcelia Cartaxo e Flávio Bauraqui
Inspirado na vida de João Francisco dos Santos, ícone da boemia carioca do início do século 20. Homossexual e transformista, usou a sexualidade e o corpo como formas de expressão. Quando um policial lista motivos pelos quais ele é nocivo à sociedade, um trecho traduz o incômodo que sua imagem causava: “Usa sobrancelhas raspadas e adota atitudes femininas, alterando até a própria voz”.
MENINOS NÃO CHORAM
(Boys Don’t Cry, EUA, 1999, 118′)
Direção: Kimberly Peirce
Com Hilary Swank, Chloë Sevigny e Peter Sarsgaard
Brandon Teena é um forasteiro. Todos gostam de Brandon na pequena cidade onde ele se instala e sua namorada nunca conheceu um homem tão delicado. Quando os amigos descobrem que ele nasceu mulher e se chama Teena Brandon, sua vida se torna um inferno. Baseado numa história real, é uma denúncia das tensões e do ódio que permeiam as relações numa sociedade (ainda) marcadamente sexista.
MINHA VIDA EM COR-DE-ROSA
(Ma Vie en Rose, Bélgica, 1997, 88′)
Direção: Alain Berliner
Com Georges Du Fresne, Michèle Laroque e Jean-Philippe Écoffrey
Ludovic, de apenas sete anos, não se considera um menino. Certo de que é menina, age como tal e deixa todos ao redor desconcertados. “É um filme sobre identidade, e não sobre o homossexualismo”, já disse o diretor. Ele acertou ao atrelar a trama ao ponto de vista terno e tocante do garoto, que deixa claro o contraste com o mundo dos adultos, sempre ávidos a condenar o que foge do dito “normal”.
ORLANDO – A MULHER IMORTAL
(Orlando, Grã-Bretanha, 1992, 94′)
Direção: Sally Potter
Com Tilda Swinton, Billy Zane e Quentin Crisp
“Sua forma combinava (…) a força de um homem e a graça de uma mulher”. Virginia Woolf descreveu assim o herói imortal de Orlando, romance de 1928. Herói que, em certo ponto de sua jornada de mais de três séculos, vira heroína. A mudança de sexo impulsionou a sátira de Woolf, uma crítica às convenções de gênero – adaptada com personalidade por Potter e consagrada na figura andrógina de Tilda Swinton.
OSAMA
(idem, Afeganistão, 2003, 83′)
Direção: Siddiq Barmak
Com Marina Golbahari e Zubaida Sahar
Com todos os homens da família mortos e com a avó e a mãe impedidas de trabalhar pelo regime talibã, uma menina precisa se disfarçar de menino para sustentar a casa. Ao manter viva sua feminilidade, mesmo em segredo, ela reafirma sua identidade.
QUANTO MAIS QUENTE MELHOR
(Some Like it Hot, EUA, 1959, 121′)
Direção: Billy Wilder
Com Marilyn Monroe, Tony Curtis e Jack Lemmon
Wilder encarou uma série de tabus com um só filme, que subverte os paradigmas de gênero e invoca conotações sobre sexualidade insólitas para a época. Com a saga de dois músicos que fogem da máfia vestindo-se de mulher e infiltrando-se numa banda feminina, essa comédia ajudou a derrubar o Código Hays, que regia a moral em Hollywood desde 1930.
TIRESIA
(idem, França, 2003, 115′)
Direção: Bertrand Bonello
Com Clara Choveaux, Laurent Lucas e Thiago Teles
Tiresia é uma travesti brasileira que mora num subúrbio de Paris. Sequestrada e mantida em cativeiro por um voyeur, deixa de tomar suas doses de hormônio e volta a ter uma aparência masculinizada. Parábola sobre a cópia como aprimoramento do original, bebe no mito grego para revelar o gênero como imagem imprecisa do todo.
TOMBOY
(idem, França, 2011, 82′)
Direção: Céline Sciamma
Com Zoé Héran e Jeanne Disson
Quando uma família se instala num bairro de classe média, a filha mais velha, Laure, 10 anos, apresenta-se na vizinhança como garoto. A obstinação dela em ser reconhecida como menino gera, no espectador, suspense e admiração na mesma medida. O segundo longa de Sciamma passou a ser usado nas aulas de educação sexual na França em 2013, para a ira de grupos conservadores.
TUDO SOBRE MINHA MÃE
(Todo Sobre Mi Madre, Espanha, 1999, 101′)
Direção: Pedro Almodóvar
Com Cecilia Roth, Marisa Paredes e Penélope Cruz
Almodóvar sempre teve fascínio pelo feminino, cujo ápice foi esta obra pulsante de sentimentos. O único personagem “masculino” relevante é o filho de Manuela, uma mãe solteira. A morte dele a aproxima de uma atriz, de uma travesti, de uma freira e de Lola, o pai transexual do jovem morto.
XXY
(idem, Argentina, 2007, 86′)
Direção: Lucía Puenzo
Com Inés Efron, Ricardo Darín e Valeria Bertuccelli
Alex é intersexual. A aparência de menina é reforçada pelos remédios que toma para suprimir as feições masculinas. Quando contraria as expectativas da mãe e para com a medicação, Alex opta por aceitar quem é – ou quem acredita que deve ser. O filme expõe diferentes nuances de uma realidade em que a “normalização” é sinônimo de “castração”.